Foto: Pixabay
Desde o surgimento da Web 2.0, em meados dos anos 2000, mais e mais sites passaram a utilizar o modelo do serviço ou conteúdo gratuito acompanhado de anúncio publicitário. É notícia de graça, é álbum de fotos gratuito, é site de rede social livre de pagamento, e todo mundo gosta de ganhar qualquer coisa de graça, certo? Entretanto, como bem diz o famoso ditado norte-americano: não existe almoço grátis. Algum preço está sendo cobrado em algum lugar desse processo de troca. Além dos nossos dados privados, receio que outro preço que estamos pagando esteja justamente na baixa qualidade do que recebemos.
Leia mais colunas de Iuri Lammel
O que me fez pensar sobre isso foi uma coluna de opinião que saiu nessa semana no site do jornal The New York Times. Nesse texto, o articulista Farhad Manjoo comenta sobre como o Netflix o ajuda a "fugir" um pouco de seu país natal estressante, os Estados Unidos. De fato, se o mundo inteiro já fala tanto sobre os EUA, imagine como é para quem vive lá dentro, ainda mais trabalhando em uma empresa jornalística. Entretanto, as redes sociais andam tão poluídas com conteúdo de baixa qualidade que Manjoo não conseguiu se "refugiar" nesses sites.
O autor escreve que, ironicamente, o lugar em que ele finalmente encontrou um refúgio e conseguiu consumir mais informações de qualidade sobre o resto do mundo foi justamente em uma empresa norte-americana: a Netflix. Para ele, a empresa de streaming de vídeo está valorizando tanto as boas produções de outros países que hoje ela é uma central de cultura internacional de qualidade: tem filme mexicano, tem série coreana, tem reality show britânico, tem documentário alemão... a maior parte de muito bom gosto.
O que me chamou a atenção foi o fato de que, se Manjoo queria acessar conteúdo de outros países, então poderia ter acessado milhões de possibilidades gratuitas e abertas na internet e assim "escapar" de seu mundo excessivamente americano. Afinal, a internet é uma comunidade internacional aberta, onde qualquer um pode publicar seus textos, fotos e vídeos de suas realidades locais. Entretanto, para o articulista do The New York Times, a qualidade da Netflix estaria anos luz à frente de qualquer site ou rede social da internet por uma simples razão: ela cobra um pagamento de seus assinantes. Isso faz com que ela não dependa da publicidade online para sobreviver.
Em outras palavras, se um serviço pago de streaming de vídeo conseguiu reunir a produção cultural de qualidade de todo o mundo, mas a internet livre e aberta não conseguiu, é porque o atual modelo de internet, com conteúdo gratuito sustentado por publicidade online, falhou. Quando empresas que visam o lucro comandam serviços completamente gratuitos, o resultado acaba sendo desastroso. Depois de uma reflexão, passei a concordar em boa parte com a tese, e vou tentar explicar o porquê.
Serviços e conteúdos gratuitos = qualidade ditada pelo índice de audiência
Quando as receitas de um serviço dependem completamente de anúncios publicitários, como no caso das redes sociais e outros sites gratuitos, o único caminho para a sustentabilidade financeira é por meio da grande quantidade de acessos, independentemente da qualidade do conteúdo. Afinal, cada acesso representa alguns centavos para a empresa dona do site.
Dessa forma, os sites (incluindo as redes sociais) com serviço "gratuito" deixam de incentivar a qualidade do conteúdo e passam a incentivar o acesso massivo e compulsivo dos usuários às informações patrocinadas. Quanto mais acessos, mais dinheiro. Assim, o site vira um escravo do índice de audiência: o importante não é a qualidade do conteúdo publicado, o importante é gerar mais e mais acessos.
Agora, quando um serviço da internet cobra um valor de seus usuários, como no caso da Netflix, ele se livra da necessidade de gerar visualizações a qualquer custo. Dessa forma, o serviço desenvolve a independência e a liberdade necessárias para filtrar seus conteúdos e priorizar as produções de maior qualidade. Quando o dinheiro é fornecido diretamente pelo consumidor, não há a necessidade de suplicar por migalhas da publicidade, então não é preciso "apelar" por conteúdo puramente chamativo e sensacionalista.
Vamos pegar como exemplo o Facebook: a rede social possui mais de dois bilhões de usuários ativos (quase um terço da população mundial), contra míseros 148 milhões do Netflix, e mesmo assim não consegue gerar conteúdo de qualidade semelhante. São duas bilhões de pessoas do mundo inteiro publicando conteúdo potencialmente rico, mas em um ambiente que segue a lógica do "quanto mais acessos, mais dinheiro pra empresa". E aí, entre as milhões de postagens publicadas por dia, as que se destacam são aquelas que chamam a atenção a todo custo, que se espalham rapidamente, que viralizam... ou seja: é um ambiente muito propício para a notícia sensacionalista, para a montagem fotográfica que polemiza, para a fake news que choca.
Empresas que visam lucro não se dedicam a produzir conteúdo gratuito de qualidade
Em um primeiro momento, pode parecer que a grande oferta de serviços gratuitos na internet seja uma grande vantagem para nós, simples "cidadãos de bem" de um país em desenvolvimento. Mas não se engane: não existe almoço grátis. Além de venderem nossas informações privadas, o outro preço que pagamos é a baixa qualidade do conteúdo.
Um bom exemplo de como a cultura da informação gratuita pode diminuir a qualidade de um produto ou serviço é o caso do jornalismo impresso. Por dezenas de anos, antes da popularização da internet, tivemos um modelo misto e equilibrado: a maior parte das receitas dos jornais vinha dos assinantes, enquanto outra parte vinha da publicidade. Nesse modelo, quanto mais pessoas liam o jornal, mais dinheiro se ganhava com publicidade, mas a verdadeira sustentabilidade do veículo era mantida pelos seus leitores assinantes, que exigiam um conteúdo de qualidade, sob o risco de migrarem suas assinaturas para o concorrente. Embora houvesse receita de publicidade, eram os leitores pagantes que ditavam a exigência de bom conteúdo.
Pois bem: no decorrer da década de 2000, a internet desenvolveu essa cultura do "conteúdo grátis" também no meio jornalístico. Qualquer um podia ter acesso à notícia gratuita e a qualquer momento. Assim, as assinaturas pagas diminuíram drasticamente, obrigando muitos sites jornalísticos a dependerem cada vez mais da publicidade online para sobreviver. Para não falirem, muitos desses sites jornalísticos passaram a focar esforços no aumento dos acessos às suas páginas, pois cada acesso renderia alguns poucos centavos do anunciante. Aí, o resultado não poderia ser diferente: se a empresa depende do aumento de acessos para sobreviver, ela vai priorizar aquilo que mais chama a atenção, em prejuízo daquilo que seria mais importante e de melhor qualidade, mas que muitas vezes não dá tanta audiência.
Sorte a nossa que em 2011, o jornal The New York Times passou a utilizar a estratégia do paywall, que pode ser traduzida livremente como "parede de pagamento", ou seja: só consegue passar dessa parede e ler a notícia aquele usuário que paga pela assinatura. Desde então, a maioria dos grandes jornais do mundo seguiram a mesma estratégia e passaram a cobrar uma assinatura em troca do acesso integral às suas matérias.
Seguidamente, vejo usuários da página de Facebook do jornal Diário de Santa Maria reclamando pelo fato de que as notícias são fechadas para os assinantes. Particularmente, acho que a exigência do pagamento pela leitura é uma estratégia necessária para se manter a independência dos veículos e a qualidade do conteúdo. E todos sabemos que uma imprensa forte é fundamental para qualquer democracia sadia. Se o Diário de Santa Maria abrir seu conteúdo e passar a depender inteiramente da publicidade, a tendência natural é a diminuição da qualidade do conteúdo.
E ultimamente venho refletindo sobre como seria necessário replicar essa estratégia de exigir pagamento pela informação em outros serviços da internet. Se você discorda, peço para fazer um exercício de imaginação: como seria a qualidade do conteúdo da Netflix se ela fosse gratuita e totalmente dependente de anunciantes? Será que no lugar dos ótimos documentários, séries e filmes, não teríamos uma enxurrada de pequenas variações de Big Brother e outros programas de qualidade duvidosa?
Eu sei: louco é quem rasga dinheiro. Eu sei que parece loucura pedir para que tenhamos menos produtos gratuitos e mais produtos pagos na internet. Mas não se engane: ninguém ganha nada de graça na internet. Você paga com seus dados privados e ainda recebe um produto que poderia ser muito melhor. Espero que o modelo de assinatura paga da Netflix se espalhe por outras áreas da internet e que, assim, tenhamos conteúdos melhores.
Ou, uma outra possibilidade (que deixo para tratar em outra coluna) seria essa ótima ideia apresentada por um estudante de pós-graduação do Instituto da Internet de Oxford: precisamos de uma empresa de mídia pública na web, uma espécie de "EBC" ou "TV Cultura" da internet, em que fundos públicos financiassem informações gratuitas de qualidade para a sociedade que está conectada, tais como websites educativos ou até mesmo jornalísticos. Vale destacar que um serviço público não precisa ter necessariamente financiamento e controle governamental, como são os casos das organizações de mídia pública BBC (Reino Unido) e PBS (Estados Unidos). Este sim seria um conteúdo verdadeiramente gratuito, mas sem a subserviência à publicidade sedenta de acessos e cliques.